No melhor pano...
Uma das coisas que mais me assusta, depois da falta de bom-senso, é a falta de sentido crítico com que vejo muitas coisas serem feitas. Faz-me lembrar os anos de faculdade, e principalmente as aulas práticas, onde (levando ao extremo!) não era raro ver alguém apresentar como conclusão que necessitava de duas toneladas de glucose para fazer 5 ml de uma solução 1 g/ml. Quando levava nas orelhas, havia sempre que sacudir a água do capote com o famigerado: "foi erro da calculadora".
Vem este registo nostálgico a propósito da recente edição da revista
Ficções (a nº13), que anuncia ser em grande parte «
fruto de uma Oficina de Tradução Literária». Uma oficina que, acrescente-se, fez passar os candidatos por um processo prévio de selecção e que cobrou propina aos escolhidos.
Sabendo-se desde cedo que as melhores traduções teriam a possibilidade de serem incluidas na Ficções, uma revista já com um estatuto reconhecido, esperava-se que a atenção no trabalho fosse redobrada, tanto dos alunos como da professora/editora
Luísa Costa Gomes.
A revista abre de maneira sublime, com
O Marinho, de
George Sand, uma fabulosa versão/tradução de
Amadeu Lopes Sabino (que aparentemente não fez parte da oficina). Depois disso, apesar de serem pálidas perante o exemplo inicial, as restantes traduções são competentes, embora claramente não todas ao mesmo nível.
Quanto à razão mais imediata que me fez comprar a revista, a promessa de inclusão de contos dentro do género fantástico, a minha desilusão foi considerável.
Luís Rodrigues apresenta um
Egnaro, de
M. John Harrison, que começa de forma brilhante, mas que se perde a meio do caminho, e
Ana Gomes apresenta
A Menina Grande do Papá, de
Ursula LeGuin, encantador mas com algumas fraquezas (ou incongruências internas?). Num outro tom de fantástico, acabei por gostar muito mais de
Cristo em Casa de Marta e de Maria, de
A.S. Byatt, traduzido por
Sara Figueiredo, aparentemente uma das alunas da oficina.
Permitam-me copiar um excerto deste útimo conto:
"[...]Nunca dirigia a palavra ao homem, mas trabalhava furiosamente na sua presença, pisando os alhos no almofariz, cortando os filetes do peixe com concentração e habilidade, sovando a massa, executando uma tatuagem de sons com o cutelo, como uma saraivada, reduzindo as cebolas a fragmentos finos de luz translúcida. Sentia-se como um espaço opressivo de escuridão ignorada, um fardo de sombra lastimável nos cantos da sala que o artista registava febrilmente."Ok, meus amigos, onde está o Wally?
Eu sei que o pós-moderno tem as costas largas, e que hoje em dia se fazem metáforas que não lembram ao diabo, mas "
uma tatuagem de sons"?!
Entra aqui em cena a falta de sentido crítico, propriedade que se revela ainda de maior importância se estamos a falar de tradução.
Obviamente não é de esperar que o tradutor saiba tudo, nem se for nativo da língua a traduzir, mas espera-se que investigue quando algo lhe soa... bizarro, e não que se limite a afastar o pormenor como parvoíce do autor.
Ora, se a tradutora se tivesse dado ao trabalho de abrir um simples dicionário, ficaria a saber que
tattoo, para além de ser uma tatuagem como as que tanto estão hoje na moda, também tem os significados de «tamborilar, bater com os dedos» e «toque de recolher, festa militar acompanhada por música, batimento contínuo».
Mesmo que nunca tenha ouvido falar em tatu militar, actividade que realmente tem caido em desuso, estamos a falar num conto realista onde tal expressão, mesmo que metafórica, salta aos olhos como desenquadrada (num conto de ficção científica já seria outra conversa!).
E, se neste caso, a tradutora o era sob o estatuto de aluna, responsabilidade redobrada de quem a estava a supervisionar, e a avaliar/rever os trabalhos para inclusão na revista. É que, nas Letras, a culpa nunca poderá ser "da calculadora".
Uma tarde, na Feira...
Antes de mais, um agradecimento a todos os autores que participaram na iniciativa da revista
BANG! de sábado passado na Feira do Livro de Lisboa (Ágata Ramos, David Soares, João Ventura, Luís Filipe Silva e Vasco Curado), ao apoio do Luís Corte-Real (Ed. Saída de Emergência) e a todos os leitores que decidiram partilhar connosco um pouco da sua visita à Feira.
Foi uma tarde bem passada, com um grupo de (novos e antigos) amigos que raramente têm oportunidade de se verem. Afinal, o objectivo que me animou a ter a ideia era também esse (para além de aproveitar a oportunidade para divulgar uma revista que tem sido muito mal-tratada pelos livreiros em termos de exposição!) e fico feliz que se tenha concretizado.
Um dos pontos altos do encontro foi a leitura-surpresa de um pequeno conto, escrito por João Ventura para comemorar a ocasião, e que por simpática permissão do autor passo a reproduzir:
TERROR NA FEIRA DO LIVROJoão Ventura
Era o dia 3 de Junho de 2006, e a feira do Livro de Lisboa estava animada. E no entanto, cerca das 16 horas, no meio da total ignorância dos visitantes da Feira, uma misteriosa teia de acontecimentos começou a tomar forma.
Cinco pessoas caminhavam em direcção a um ponto situado perto do Pavilhão 182, e as suas posições instantâneas, se representadas sobre um mapa da zona, permitiriam traçar um perfeito pentagrama, claro indicador de futuras perturbações no contínuo espacio-temporal. No ponto focal desta convergência posicionou-se Rogério Ribeiro (aka Battlestar Draco) autor da convocatória e portanto a causa (embora involuntária) dos acontecimentos seguintes, minuciosamente narrados num manuscrito que, numa gruta perdida no deserto do Sinai, aguarda ainda a chegada dos arqueólogos.
Ágata Ramos descobriu subitamente que estava a ser perseguida pelo Sr. Bentley, qua a insultava aos berros, ameaçando partir-lhe a cabeça com o guarda-chuva, e que de caminho ia dando caneladas aos visitantes da feira que tinham o azar de não se afastar rapidamente da sua trajectória furiosa.
Vasco Curado quase foi atacado por um bando de indivíduos de aspecto estranho, de roupa molhada como se tivessem acabado de sair do rio, feições bizarras – a primeira ideia que lhe ocorreu é que pareciam peixes. Fugiu deles internando-se mais na feira, afim de dificultar a perseguição.
João Ventura, deambulando a caminho do Pavilhão 182, deu-se conta de que um grupo de fantasmas o seguia. Deviam ser fantasmas, eram translúcidos, e deslizavam mais do que andavam. À cautela, apressou o passo em direcção ao seu objectivo.
Atrás de David Soares vinham dois homens, um transportando um saco cheio de ossos, o outro uma bolsa repleta de vísceras de animais (seriam mesmo de animais?). Discutiam entre si, mas os seus olhares malévolos não se desviavam de David, e tentavam encurtar a distância que os separava dele.
Luís Filipe Silva corre pela vida. Atrás dele vem um grupo com fardas SS, e sabe que se os deixar chegar perto de si, as toxinas que lhe vão injectar farão com que um laboratório de investigação bacteriológica pareça um local asséptico.
Os cinco autores apressam-se em direcção ao ponto focal, perseguidos pelas suas personagens, cada vez mais próximas, já se vêem uns aos outros e ao Rogério no centro, mas a distância aos perseguidores está mais curta.
Já o famoso Bandarra, no século XVI, tinha profetizado:
"E na extensa avenida
No meio da gente e dos livros
Terríveis cousas houveram
Cinco escritores perseguidos
P'los escritos que escreveram."
Sobre o recinto da Feira existe agora uma atmosfera ominosa, o Sol encoberto por nuvens negras de tempestade. Apercebendo-se do perigo, Luis Corte-Real mantém a Saída de Emergência aberta...
Conseguirão as criaturas destruir os seus criadores?
Conseguirão os criadores escapar à fúria assassina das suas criaturas?
Siga o destino destes e de outros autores, e suas criaturas... não perca a Bang!
JR na SFRA
O título é criptico, e certamente muito ao gosto dos norte-americanos, uns acronimistas inveterados, mas explica-se facilmente.
Jorge Rosa, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa, estará presente na 37ª Conferência Anual da
Science Fiction Research Association, a ter lugar de 22 a 25 do mês de Junho, em White Plains, Nova Iorque, e subordinada ao tema "When Genres Collide".
Integrado no
programa oficial na secção "Homage to SF Icons", Jorge Rosa (que, pela sua passagem pela Universidade de Berkeley, já deve estar habituado a ser qualquer coisa como "the
Mister rà-ú-za") tem como colega de
oral presentation session o conhecido Peter Nichols, editor principal de algumas das mais utilizadas Enciclopédias de FC e Fantasia.