Mucha, de David Soares e Co. - Análise
Não sou grande fã do surrealismo, não sou grande fã de um certo tipo de arte bedéfila a preto e branco, o terror não é o meu género preferido dentro da literatura fantástica, mas tenho de admitir que Mucha, a recente colaboração entre David Soares (argumento), Osvaldo Medina (lápis) e Mário Freitas (arte-final e edição), livro que reune as três características enunciadas antes, conseguiu despertar em mim emoções e reflexões de forma rara.
À semelhança do que escreveu Pedro Moura no prefácio, também a mim me causou estranheza a economia de palavras evidenciada ao longo das suas 32 páginas; mais ainda quanto o David até me tem habituado nos seus romances a uma talvez exagerada necessidade de passar informação (por exemplo, acho que uma das poucas falhas no romance "Lisboa Triunfante" será pontualmente o uso exagerado de notas de rodapé). No quadro desta obra, essa economia tornou-se uma mais-valia; dando mais espaço para o envolvimento por um ambiente de tensão, ainda mais evidenciado pela sucessão quase cinematográfica de alguns quadrados.
Mucha inicia-se com um pesadelo. Um pesadelo "normal" que anuncia o pesadelo que está para ser vivido numa pequena aldeia polaca, em plena época de invasão nazi. Aqui inicia-se também o uso da nudez como uma marca distinta da "irrealidade", que será retomada de forma tremendamente inteligente quase no fim do livro.
Rusalka é uma camponesa comum, testemunha involuntária do quotidiano dos seus familiares e vizinhos. E todo esse seu clima de familiaridade é quebrado certa manhã ao ser confrontada com a transformação de todos os membros da aldeia em gigantescas moscas. Acresce que Rusalka está grávida, o que lança um manto de suspeição sobre o real estatuto do feto: humano ou insectóide?
Todo este cenário faz com que as reacções de Rusalka sejam pautadas pela estupefacção e pelo pavor. Compreensível. Mas, em Mucha, acho que emerge um sentido ainda mais premente do que a simpatia pelas atitudes de Rusalka: o de empatia pela violência demonstrada pelos aldeões, agora moscas. Mudas, as moscas deixam no ar a dúvida se as suas investidas serão fúrias violentas ou desajeitados pedidos de auxílio, se a sua carnificina será expressão de uma raiva extravasada ou de um apetite descontrolado perante a instalação num corpo que não era o seu.
E é num momento em que a obra se parece focar num dilema intimo que sofre uma reviravolta; fruto de uma força exterior a este conflito, sob a forma de um pelotão de tropas nazis, liderado por um oficial das SS. De novo numa opção que parece reduzir a importância do discurso falado para o desenvolvimento da história, os diálogos na língua germânica são mantidos tal e qual, sem tradução (lembrando outros autores, como Umberto Eco). Salva-nos a contextualização das cenas e a frequência com que surgem palavras porventura mais familiares (como 'frau', 'juden', 'scheisse', 'vater' ou 'schnell').
Não levantando o véu sobre o final, apenas assinalo que é relativizador de toda a história.
Editado com assinalável cuidado e qualidade pela Kingpin Books, com um preço de capa de 8,95 euros, será difícil de crer que a tiragem inicial de 300 exemplares não esgote...
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