Talentos Fantásticos 2009 - Análise (I)
A antologia Talentos Fantásticos 2009 possuí 3 secções: poesia, ilustração e conto.Talvez a pergunta que mais roda na cabeça de quem não teve acesso à obra é: os trabalhos têm qualidade?
Nas duas primeiras categorias, vou-me limitar a um comentário muito superficial.
Não sou particularmente adepto de poesia, mas a estrutura do poema que ganhou (O Rei do Submundo, de Emanuel Madalena) fez-me lembrar demasiado as rimas infantis (Exemplo maior na 2ª secção do poema, onde 3 linhas terminam com a palavra "donzela" e outras 3 linhas com a palavra "belas"). Esperava mais de uma obra vencedora! Paradoxalmente, foi precisamente o poema apresentado extra-concurso, Absurda Sedação, de Luísa Azevedo, que mais me prendeu a atenção. Ao contrário da excessiva pomposidade que tantas vezes transpira nos poemas ambientados no género fantástico, este consegue ter uma desarmante simplicidade.
As 13 ilustrações apresentadas beneficiaram bastante por serem apresentadas a cores (numa opção que, sendo mais custosa, se elogia ao editor). Tendo achado a ilustração vencedora (Mafarrecos, de Carlos Ré) demasiado caricatural, e sem elementos de fundo que a enriquecessem, a minha preferência vai para a que granjeou o terceiro lugar, Excalibur, de Fernando Martins; uma foto-montagem de ambiente arturiano. Mais uma vez, referência adicional para a ilustração apresentada extra-concurso, de Miguel Ministro (também autor da capa da antologia), a revelar um traço firme e uma boa coloração. Por outro lado, a inclusão de algumas ilustrações, como as de Pedro d'Almeida e Tessevê, teriam sido perfeitamente evitáveis.
Quanto aos contos, tive oportunidade de ler os oito primeiros classificados.
A minha primeira impressão, comparando o que li com a tabela de classificação é que realmente um concurso de literatura não é o mesmo que um teste de matemática. Critérios como "Adequação" ou "Criatividade" não podem ser numericamente traduzidos, e uma média retirada, sob pena da produzir as deturpações vistas, nomeadamente na colocação do 2º classificado, um conto bem menor que qualquer um dos restantes sete no topo da tabela. A subjectividade de uma atribuição numérica de 0 a 100 num grupo tão grande de contos será sem dúvida maior do que a subjectividade de uma apreciação em conjunto, com a eliminação de obras por vários critérios até se obter uma lista mais curta passível de ser avaliada por consenso dos membros do júri.
Mas voltando aos contos:
O vencedor da categoria, Render da Guarda, de Ludovico Alves, poderia até revelar um novo talento, mas é um conto demasiado soterrado sob o peso de ter sido retirado de uma obra maior. Há demasiada informação que se revela irrelevante para o presente conto. Espaço esse que teria sido essencial para deixar "respirar" um pouco mais a personagem principal. Realmente, o conto consegue desenvolver um dilema moral que vai satisfatoriamente mais além do clássico confronto Bem/Mal, no entanto as limitações de espaço do conto acabam por impedir que essa tensão seja desenvolvida da melhor maneira. Adicionalmente, os elementos de história alternativa, e de "magia", se melhor polidos e entretecidos no texto principal, podem imbuir o conto de uma mais-valia própria.
Luz, de Carla Marques, acaba por ser um intruso neste pelotão da frente. Demasiado ingénuo e inconsistente, não se entende como esta história de profecias e invasões alienígenas ficou em 2º lugar. Consultando a tabela de classificação, constatamos que a sua maior classificação foi no quesito "Adequação"... o que quer que isso queira dizer, num género tão abrangente como o Fantástico! E mesmo que isso fosse verdade, o que discordo grandemente perante a falta de qualidade do conto.
Em terceiro lugar surge Quem semeia ventos, colhe tempestades, de Carlos Silva. Para mim, um dos merecedores do primeiro prémio. Enraizado em mitos ibéricos, conta a história de uma viúva e de um trasgo, um duende encantado, ambos numa demanda. O clima de familiaridade é muito bem conseguido.
Enganando a morte, de João Rogaciano, também se ocupa com uma demanda; a de um milionário de 80 anos às portas da Morte, que tenta os novos desenvolvimentos da Ciência para dela escapar. O desenvolvimento do conto está bem pensado e surpreende o leitor, pese embora que o trecho da recuperação do paciente deveria ser mais cuidado, para impressionar mais gradualmente que algo de estranho está a ocorrer. A resolução do conto é irónica e deliciosa.
Esboços da realidade, de Luís Miguel Teixeira, é um conto interessante, bem estruturado. Narra a história de um pai que procura a cura para a doença rara do filho, sem se aperceber de todas as implicações dessa doença. A sua resolução é satisfatória, apesar de se tornar previsível desde meio do conto.
Já A Desconhecida, de Emanuel Marques, a história de um indivíduo que parece ser acompanhado pelo fantasma de uma jovem rapariga, merecia ser mais pausado. O final, muito bem encontrado, acaba por ser apresentado de forma meio desastrada, fruto de uma exposição menos bem conseguida ao longo da narração. Uma gestão mais cuidada da tensão durante o conto faria melhorar bastante o efeito final.
Carvalho-e-velho, de Marcelina Leandro, acaba por se revelar um conto algo inconsequente. A uma primeira parte mais cuidosamente detalhada, segue-se uma segunda parte demasiado apressada e inconsistente. Uma frase final aparentemente mal escrita deixa o leitor totalmente desorientado quanto ao que a autora quereria dizer no encerramento do conto.
Por último neste grupo, O Último, de Joel Puga, uma prova que ainda se conseguem escrever contos arejados e originais com base nos grandes clichés, como as histórias de vampiros e a fantasia épica. Um conto bem estruturado, com pormenores deliciosos, claramente bem pesquisados e bem aproveitados. Perante o Armagedão, Lorde Ekkehard demonstra que com a imortalidade perdeu muito do que o fazia humano, mas não tudo.
Foi com agradável surpresa que me deleitei com alguns dos contos acima mencionados, e que foram avaliados pelo júri como os mais qualificados. Continuarei em breve pelos restantes.
Por isso, ainda me entristece mais as condições em que tal antologia foi produzida. Revela que existem realmente autores a serem incentivados na escrita, mas que mereciam muito mais em troca disso do que o que obtiveram.
E, por favor, não me digam que o propósito deles era verem-se publicados e não ganhar dinheiro. Dos meus 20 euros, gostaria que cada um deles tivesse ganho mais do que 2.5 cêntimos na teoria... e absolutamente nada na prática!
14 Comments:
Estou a gostar muito das tuas análise a esta antologia. Também já tenho um exemplar para poder analisar. Depois da grande tempestade de "opiniões" sobre a mesma e do "normal" resvalar para a crítica por vezes infundada, que já vi acontecer noutras ocasiões, é de saudar uma voz crítica como a tua, com o cuidado de alguém que sabe o que faz e que realmente se dá ao trabalho de ler a obra. Gostaria até de te convidar a publicar estes posts no correio do fantástico, pela sua relevância no presente. Que me dizes?
Um abraço,
Roberto Mendes
Obrigada pela crítica ao meu conto, tem razão quanto à ultima frase, está incorrecta. :|
Obrigada pela opinião sobre o meu conto. Ainda bem que gostou ;)
"Depois da grande tempestade de "opiniões" sobre a mesma e do "normal" resvalar para a crítica por vezes infundada, que já vi acontecer noutras ocasiões, é de saudar uma voz crítica como a tua, com o cuidado de alguém que sabe o que faz e que realmente se dá ao trabalho de ler a obra."
Pergunta: O Roberto Mendes acha que era preciso ler a obra para se poder criticar e discutir o que foi criticado e discutido?
Caro Rogério,
Se já havia gostado do seu post anterior, mais só tenho a elogiar este.
E congratulo-me com o facto da sua afirmação "Foi com agradável surpresa que me deleitei com alguns dos contos acima mencionados, e que foram avaliados pelo júri como os mais qualificados."
Para além disso, apenas um "reparo":
"A subjectividade de uma atribuição numérica de 0 a 100 num grupo tão grande de contos será sem dúvida maior do que a subjectividade de uma apreciação em conjunto, com a eliminação de obras por vários critérios até se obter uma lista mais curta passível de ser avaliada por consenso dos membros do júri."
Como, num caso destes, seguindo o seu procedimento indicado nas linhas acima, se consegue um clima de transparência relativamente à avaliação? Se mesmo assim, foi o que foi...
Cumprimentos,
Carlos Lopes
Mendes e companhia: Metam de uma vez por todas na cabeça que o conteúdo da antologia nunca esteve em causa, antes a forma como os oitenta autores estão a ser tratados, pagando pelos seus exemplares e consequentemente os custos edição, que deviam ser responsabilidade exclusiva da Edita-me. Isto não é, nem nunca foi, uma questão de crítica literária.
Saafa e Sr Anónimo:
Apenas queria ler a opinião de alguém que tivesse lido a obra. Eu fui um dos que criticaram o arranque inicial da iniciativa da edita-me, porém escolhi não participar na discussão no "Stranger in a Strange Land" e no site da edita-me. Li o que foi escrito, continuo a apreciar e a concordar com o seu trabalho(Saafa) sobre as pseudo-editoras.Contudo a conversa começou a perder a educação e a maturidade necessárias para uma discussão séria(como aconteceu outras vezes em vários blogues sobre assuntos do fantástico). Por isso estava ansioso por ler uma crítica ao conteúdo da antologia. Sinceramente estou cansado da crítica ao projecto de per se; quero, isso sim, ler sobre o conteúdo. Nesse sentido felicitei o Rogério, porque me proporcionou o que eu procurava. Portando eu falo de crítica literária, não de direitos de autor. Até porque me parece que ninguém foi obrigado a concorrer e a ser publicado nos moldes em que aconteceu. Penso que deve ter sido acordado entre as partes, como é de direito, as mais diversas obrigações. Falo, claro está, de um contrato. Dando um exemplo muito pessoal: quando li sobre o concurso, achei tão dúbia a noção de fantástico que era dada, entre outras coisas, que acabei por escolher não participar. Houve quem arriscasse e não crítico quem o tenha feito. Para mim, desde que todos os autores tenham tido conhecimento do que era realmente o projecto não vejo qualquer problema. Seria melhor os autores serem pagos pelo seu trabalho? Sim. Seria melhor beneficiarem de um desconto em moldes diferentes do oferecido?Claro. Seria melhor que fossem oferecidos livros a cada autor?Absolutamente. Mas os autores acordaram (num hipotético contrato, o qual desconheço se existiu ou não) essas cláusulas? Será que algum autor preferiu não ser publicado porque não se sentia protegido nos seus direitos?
Pelo que tenho interpretado desta situação a questão divide-se em dois pontos:
1- As pessoas que escreveram no site da edita-me e no blogue Stranger in a Strange Land queriam denunciar as práticas de uma editora (ou vanity press, o que lhe quiserem chamar).
2- Estas pessoas queriam proteger os autores, tomando o lugar de seus defensores, das práticas da editora, alertando-os para os perigos de uma fraca protecção quanto aos direitos de autor.
Se estou certo, então o objectivo era educar os autores sobre os perigos que podem encontrar neste tipo de iniciativas. Seguindo um raciocínio lógico penso que esse é um objectivo meritório. Mas se me perguntarem se concordo com a forma como ele foi prosseguido? Não concordo de todo que seja através de comentários, que por vezes utilizavam expressões grosseiras. Não sou a favor da falta de educação notória em alguns comentários. Concordo, no entanto, que através de posts (como faz a Saafa) se alerte para os perigos.
Concordo que se tente educar, mas sempre de uma forma correcta.
Prefiro, por razões pessoais, morais e até profissionais, não me envolver em discussões em que a educação não seja um pilar fundamental. Mas mesmo seguindo um caminho silencioso, sem me incluir na discussão, fui novamente chamado à colação da discussão. O que algumas pessoas ainda não perceberam é o seguinte:
1- Não tenho o mesmo estilo de alguns membros do tal "fandom nacional".
2- Não tenho pretensões de discutir com ninguém, apenas pretendo ser útil.
3-Não vou desaparecer deste meio, mesmo que muitos não gostem de me ver por cá.
4- E, finalmente, vou tentar ser o mais útil que me é possível à literatura fantástica portuguesa, e quem quiser ajudar-me é bem vindo.
Também eu quero os autores mais atentos, também eu quero que os autores sejam pagos. Mas para isso são os próprios autores que se têm de proteger, e se não percebem de direitos de autor existem muitos advogados disponíveis.
Tenho esperança que daqui a uns meses, quando a Vollüspa for publicada e a Dagon passar ao papel, se possa gerar uma discussão crítica, e que quer se goste, não goste ou se deteste estas publicações, o possam dizer sem usar de atitudes que nada dignificam a literatura fantástica portuguesa.
Deste modo termino da seguinte forma:
Podia esta discussão decorrer sem a habitual má educação?Podia, mas não era a mesma coisa.
post scriptum: Não li nenhum comentário que use de má educção por parte da Saafa, logo não viso a sua pessoa com as críticas referentes a esses comportamentos. Espero sinceramente que não me percebam mal desta vez.
há editoras...onde se publica de graça...
outras onde temos o trabalho de participar num concurso..somos ignorados...e ainda temos que dar DEZOITO EUROS! para ter UM CONTO!...eh lah...nem por um livro de mais de 500 páginas dei isso
Roberto:
Obrigado pelo comentário. Julgo que, estando o meu post disponível aqui, não fará muito sentido duplicá-lo no Correio.
Por outro lado, sente-te à vontade de o linkar quando colocares as tuas impressões no Correio.
Um abraço,
Rogério
Marcelina e Joel:
Fico à espera de ver mais material vosso a surgir em publicações.
Rogério
Carlos:
Sou da opinião que uma avaliação deste estilo não se coaduna com parâmetros estritamente numéricos. Pequenas diferenças a nivel pessoal podem provocar grandes diferenças em termos de média, nem sempre se expressando de forma proporcional ao peso de cada júri (a estatística tem destas coisas...).
Por outro lado, não há que temer a subjectividade que advém do gosto de cada um!
Creio que o clima de transparência da avaliação não seria afectado negativamente se os membros do júri produzissem uma lista mais curta de seleccionados que seriam posteriormente ordenados por discussão e consenso entre os membros do júri.
Penso que será um processo já testado!
Obrigado pela sua crítica ao meu poema!
De facto, as rimas do poema lembram as infantis. Era exactamente essa a minha intenção, dar um tom lúdico ao poema, quase lenga-lenga nalgumas partes. Agora se tal poema merece ou não ser considerado o vencedor já é, obviamente, subjectivo.
Mesmo vendo que não gostou, fiquei contente por ter havido alguém a comentar o meu trabalho no meio destas polémicas todas... Obrigado!
Caro Rogério,
Quero desde já agradecer a crítica que fez ao meu conto "Enganando a morte". É para mim um grande prazer ter gostado do final do mesmo.
Um abraço,
João Rogaciano
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