O Regresso dos Deuses: Rebelião - Resenha
Coloquemos desde já as cartas em cima da mesa: O Regresso dos Deuses – Rebelião (2011, Editorial Presença), de Pedro Ventura, é um livro que um leitor ou adora ou odeia. Isto porque a obra, transcendendo as suas qualidades e defeitos, é movida por uma escrita tão intensa e visceral, por vezes extremamente desapaixonada, outras vezes exactamente o oposto, que não deixa espaço à indiferença.Calédra, antiga rainha dos aurabranos, é acordada após um sono de décadas, qual Rei Artur destinado a ressurgir no momento de maior necessidade. Mas aqui começa também o calvário desta personagem: as expectativas de um mundo pesam sobre esta guerreira singular, mas ainda desorientada perante a nova era. A reacção não poderia deixar de ser intempestiva; de vontade férrea, aceita a sua responsabilidade, mas nos seus próprios termos.
Crescentemente, Calédra torna-se um “buraco-negro” que condiciona amigos e inimigos. Para além disso, é esta a personagem que marca todo o livro, e é ela que o carrega do princípio ao fim. Dona de uma personalidade indomável, revelando-se muitas vezes prepotente, arbitrária, ou apenas moralmente alheada, Calédra demonstra uma aposta de Pedro Ventura em criar uma protagonista em tudo diferente do molde já batido da comum fantasia épica.
Aliás, também o arco de história, que engloba mais do que este livro, deixa, principalmente na figura dos endeusados Holkan e da sua relação com Calédra, pistas que remetem esse mesmo registo de fantasia épica para um suspeito véu colocado sobre a nossa percepção da realidade.
Toda a narrativa está bem construída (para um volume que funciona como introdução a uma obra mais vasta), mas assenta fortemente na aceitação do leitor em se tornar em mais um dos seguidores indefectíveis de Calédra. Sem essa “submissão”, que o autor consegue lograr pelo arrojo com que impõe a protagonista, imagino que a leitura seja dificultada. Com uma escrita adulta, e um enredo que muito se aproxima de um espírito quase shakespeariano, Pedro Ventura faz poucas concessões ao facilitismo, ocupando uma posição na actual literatura fantástica nacional que, apesar de não esvaziada de executantes, era urgente reforçar.
A linguagem utilizada poderá revelar-se outro ponto de ruptura. Assumidamente grandiloquente, poderá para alguns leitores ser insuportavelmente pomposa. Verdadeiramente, o nível de tolerância é marcado pela imersão que o leitor ser permitirá ter na história. E esta limitação inicial acaba por ser uma mais-valia para o seguimento da leitura; quer quando existem alguns episódios cuja exposição está menos conseguida, quer quando as atitudes das personagens dificultam a manutenção de empatia ou identificação do leitor com as mesmas. Mas para quem lá chegar, a leitura já se terá tornado compulsiva.
Apresentando-se como um (re)início ambicioso, e deixando no final das suas páginas a promessa de maiores revelações num volume vindouro, Regresso dos Deuses – Rebelião marca, em boa hora, a “descoberta” de Pedro Ventura pelo grande público. Estão de parabéns o autor e a editora, por esta honrosa adição à colecção Via Láctea.
3 Comments:
"(...)qual Merlin destinado a ressurgir no momento de maior necessidade."
Quem estaria destinado a ressurgir na hora de maior necessidade do seu povo não era o Merlin mas sim o rei Artur.
Olá.
Perfeitamente de acordo (e corrigido). O facto de ambos estarem a "dormir" em várias das versões da lenda levou a que trocasse a referência.
Um abraço,
Roger
Pois... No 'Once and Future King', na hora de maior necessidade o Merlin até está a dormir! =)
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