Ilario, de Mary Gentle - Resenha
Depois de ter lido Ash, de Mary Gentle, qualquer outro livro que se aproxime do género (uma mescla de fantasia épica histórica e ficção científica) tem uma tarefa acrescida para me conquistar. Sendo assim, como se comportaria Ilario (2006), a expansão da noveleta Under the Penitence (2004), passado no mesmo universo de Ash?
A primeira surpresa foi tratar-se de um livro substancialmente diferente de Ash, considerando que decorre no mesmo universo. E a estranheza inicial no tratamento das personagens, abre caminho a uma obra magistral; que mais uma vez sublinha que Mary Gentle é uma das autoras do fantástico que mereceria bastante mais reconhecimento.
Esta é uma era de Renascimento consideravelmente diferente da que conhecemos dos livros de História. A Europa divide-se entre os seguidores de Christus Imperador e os do Cristo Verde; o assento papal em Roma mantém-se vazio, fruto de uma maldição; o império visigótico de Cartago domina o Norte de África, mergulhado no entanto na escuridão total da Penitência; Constantinopla prospera, mas como trono dos Faraós expulsos do Egipto; e a Península Ibérica treme após anos de cruzada contra os Francos.
Apesar deste quadro, das guerras e intrigas entre os diferentes reinos, esta história é mais baseada nas mudanças interiores dos personagens do que em grandes épicos. Devido a esse aspecto mais contemplativo, a narrativa é forçosamente mais lenta; aliás, um choque inicial para quem tiver lido anteriormente Ash.
Mary Gentle demonstra ter a capacidade de manter a narrativa com rédeas bem apertadas. Contida desta forma, num passo que se estranha mas depois se entranha, está montado o palco para nos contar a história de Ilario, o aprendiz-de-pintor hermafrodita. Ilario que é no fundo duas personagens: Ilario e Ilaria. Uma mudança que não é apenas determinada pela roupa, mas também pela psicologia da personagem. Mais do que uma dificuldade de definição sexual, que acaba por ser a questão subalterna, há um crescente despertar para as duas pessoas que parecem viver dentro de si.
Para além das questões de género, Ilario/Ilaria é um manancial de pontos de ruptura: foragido da corte de Taraconensis, onde era tratado como Bobo Real; jurado de morte pela nobre Rosamunda, sua mãe; adorado contra sua vontade pelo general-mercenário Honorius, o pai que desconhecia a sua existência; escravo do misterioso eunuco Rehkmire; aprendiz do revolucionário pintor Masaccio; entre muitas outras facetas e peripécias, que o levarão de Taraco a Cartago, a Roma, Veneza e Constantinopla.
Mais haveria para dizer, desde a fabulosa caracterização de figurantes como o Janissário Baris ou a egípcia Neferet, o surgimento de figuras históricas, como Leon Battista Alberti ou Gutenberg, ou a decadência dos Etruscos e as pistas para a presença dos golem (mais uma vez, reconhecíveis por quem tiver lido Ash), entre muitos outros factos e personagens que se vão misturando com a história de Ilario.
Entretecida por toda a obra, Mary Gentle oferece-nos uma profunda reflexão sobre identidade, sociedade e poder… e maternidade. A seu tempo, a tensão física vai aumentando, quando a ameaça constante de assassinos a soldo se vai transformando aos poucos no terror da intervenção dos Estados. E quando tudo parece prestes a explodir, Mary Gentle alarga ainda mais a sua tapeçaria, revelando-nos novas surpresas.
Mesmo não se tratando de uma leitura fácil em inglês (Mary Gentle tem vários graus académicos em Estudos Medievais e Estudos Bélicos, e domina um vocabulário e terminologia riquíssimos), não posso deixar de a aconselhar.
E para as editoras nacionais, que têm tido algum receio perante as mais de 1200 páginas de Ash, talvez este Ilario, que se passa alguns anos antes de Ash, seja a solução ideal para introduzir a autora aos leitores portugueses. Até porque a versão que adquiri foi impecavelmente dividida em dois volumes, de 360 páginas cada: The Lion’s Eye e The Stone Golem.
6 Comments:
Não fazes ideia à quanto tempo ando para ler o ASH. Creio até que terá sido o livro que me fez pensar em começar a ler em inglês. E porque ainda não o li? Porque não há na BookDep e não me apetece comprar os 4 livros em que foi dividido na américa (leia-se amazon). Uma pergunta. Sabes se o 1610 (http://www.bookdepository.co.uk/1610-Mary-Gentle/9780575075528?b=-3&t=-20#Fulldescription-20) passa-se no mesmo universo de ASH e Ilario?
Acho que o 1610 é separado da "First History", onde se inserem o Ash e o Ilario.
Eu tenho 3 dos 4 volumes US, mas coloquei-os de lado mal comprei a versão inglesa num só volume. Mas podes encontrá-lo facilmente, e barato, na Alibris:
http://www.alibris.co.uk/booksearch?qwork=450260&matches=23&keyword=mary+gentle+ash&cm_sp=works*listing*title
Aconselho vivamente, tenho tido uma boa experiência como comprador. Aliás, foi onde consegui por bom preço a edição limitada do Under the Penitence, da PS, autografado pela autora! ;)
Abraço,
Roger
E, se o interesse pelo universo for mesmo grande, ainda tens uma novela, "The Logistics of Carthage", incluida na colectânea Cartomancy, e que tem um ensaio a explicar a génese desse universo.
Claro que uma rápida pesquisa no google também te poderia dar hipoteticamente isto:
http://www.univeros.com/usenet/cache/alt.binaries.ebooks/10.000.SciFi.and.Fantasy.Ebooks/Mary%20Gentle/Mary%20Gentle%20-%20The%20Logistics%20of%20Carthage.pdf
Não apenas como aperitivo para te fazer comprar os livros... ;)
Abraço,
Roger
"Mas apenas" :)
Encontrei esta análise do 1610 (http://www.sfsite.com/05b/sg176.htm) e fiquei na dúvida se será uma continuação do Ilário ou o Ilário num único volume em vez dos dois que leste.
Em relação ao Alibris, vi vários livros a 78 cêntimos(ingleses). Será mesmo assim? E presumo que há lugar a pagamento de taxas de envio. Certo?
Acho que não é continuação, é outra história alternativa com um ponto de divergência muito mais tardio do que aquele aplicado no mundo de Ash.
Sim, tens de juntar portes de envio (se avançares com o processo de encomenda diz-te logo quanto é), que no entanto continuam a fazer valer a pena (convém escolheres livrarias inglesas, embora já tenha recebido coisas dos states aos mesmos portes, já que eles enviam para inglaterra em bulk e depois daí distribuem pela europa).
Abraço,
Roger
Enviar um comentário
<< Home