Dagon #1 - Resenha
Esta resenha irá assentar necessariamente em duas linhas-mestras, que porventura se irão revelar por vezes irreconciliáveis: o entusiasmo militante pelo aparecimento de mais uma publicação em papel sobre literatura fantástica e a atenção à qualidade e substância exigíveis a qualquer obra deste género.
Como aqui noticiado anteriormente, a revista
Dagon #1 foi lançada, no Porto, a 23 de Janeiro deste ano. Dirigida por
Roberto Mendes, e publicada pela
Edita-me, este primeiro número em papel foi a evolução lógica da
versão zero publicada em pdf, e, segundo os seus responsáveis (
Roberto Mendes e
Carlos Lopes) afirmaram na cerimónia de lançamento, correspondeu a uma auspiciosa convergência de interesses entre o seu editor e a casa de edição.
A revista propriamente dita é agradável de manusear, e atractiva à vista. A ilustração da capa, da autoria de
Miguel Ministro, inspirada no conto de
Luís Filipe Silva, é impactante e está bem interligada com o cabeçalho da revista; apesar da interferência constituída pela introdução do nome do editor, em letra dissonante, logo abaixo do cabeçalho (uma escolha assaz invulgar para a capa!).
Paradoxalmente, o nome do editor encontra-se ausente do editorial inicial (preferindo assinar um posfácio na penúltima página). Escolha que não se discute; mas que se lamenta, mormente porque se poderia ter evitado a opção, de gosto duvidoso, de “colocar a revista a falar de si própria” (à semelhança do que tinha sido feito no número zero – e que foi daí parcialmente “plagiado”), ainda para mais num tom de desproporcionado lirismo.
Mas compreende-se o entusiasmo; embora já não seja de tão tolerante entendimento a asserção de estarmos perante a «única revista portuguesa de literatura fantástica», uma observação no mínimo inexacta.
Se a passagem da Dagon do registo electrónico para o papel significou que a paginação se tornou mais escorreita, por outro lado levou à perda quase por completo do acompanhamento gráfico aos contos e artigos. Enquanto no nº zero cada conto ou secção possuía uma ilustração adequada, agora as peças são apresentadas nuas de qualquer ilustração ou qualquer outro acompanhamento gráfico. Excepção feita, no fim de alguns contos, para uma fotografia do autor a acompanhar uma curta biografia.
Esta regra é apenas quebrada em 4 páginas interiores, que constituem uma galeria (5 ilustrações, a cores) de
Miguel Ministro. Pequena mostra do trabalho talentoso deste jovem ilustrador, a seguir atentamente no futuro.
Quanto ao conteúdo literário, foi bem equilibrado entre nacionais e estrangeiros, e entre veteranos e novos autores.
A abrir,
Luís Filipe Silva apresenta-nos “Dormindo com o Inimigo”, uma homenagem à série
Twilight Zone, anteriormente publicado na antologia brasileira
Galeria do Sobrenatural (2009). Nele, o último homem na Terra descobre uma fêmea humanóide capaz de despertar em si a mais básica das necessidades. Escusado será dizer que a conclusão é bem diferente da esperada pelo leitor, num verdadeiro referencial à ficção científica dos anos 50-60. O desenrolar do conto apenas é prejudicado pela clarificação tardia da origem do último homem na Terra, e no fundo do verdadeiro cenário da história; incógnita que distrai desnecessariamente o leitor até três quartos do conto.
“A Balada do Executor”, de
Carla Ribeiro, é um conto de fantasia, centrado em emoções interiorizadas, em detrimento do lado épico, o que o aproxima mais de autores como
Gene Wolfe do que de fantasistas como
Tolkien. Aqui, Scorpio Carfi, carrasco-mor da religião instituída pela Deusa, vê-se envolvido em perigosos jogos de poder e sedução. A primeira metade do conto é claramente superior à segunda. A ambiência conseguida no início não resiste à forma previsível como a narrativa se desenvolve e a alguma pressa na conclusão. O que é uma pena, perante um início com boas indicações.
Sobre a peça “Glória Perpétua”, de
Roberto Mendes, pende uma espada muito mais pesada. Neste tipo de publicações existe sempre uma grande celeuma sobre a participação dos próprios editores. Alguns resolvem isso publicando-se sob pseudónimo; ao mesmo tempo uma maneira de testar a verdadeira reacção aos textos, não filtrada pelas amizades ou inimizades dedicadas ao editor. Outros decidem assumir a sua autoria, submetendo-se a um escrutínio mais exigente do conteúdo.
No caso presente, este exercício de escrita angustiada (e angustiante) surge como o elo mais fraco de toda a revista. Com uma escrita palavrosa, mas ao mesmo tempo vácua, Roberto Mendes consegue alienar o leitor ainda antes de terminado o (curto) texto. E nem o chamar-lhe (no posfácio) “prosa poética” serve de salvação!
A secção internacional é assegurada por “Brasereiros”, de
Nir Yaniv. Obtido por colaboração com a antologia
The Apex Book of World SF (2009), este conto terá constituído, para mim, a maior decepção da revista, dado falhar atingir os altos predicados que lhe eram publicitados. Se é verdade que, pela forma como está escrito, encerra uma experiência literária formalmente com algum interesse, nomeadamente na repetição/adulteração de um segmento do texto, a especificidade cultural a que este conto estava obrigado, por força da filosofia que presidiu à constituição da antologia, é afinal completamente nula!
A diferença entre este conto e milhentos que surgem por autoria de escritores anglófonos é, com muita boa-vontade, a referência a «telhados e tanques de água da cidade altaneira de Tel Aviv». Ou seja, a propalada iniciativa de mostrar ao mundo como escritores não-anglófonos «podem contribuir com perspectivas únicas sobre as coisas» (da entrevista com Lavie Tidhar) parece, a tomar este conto como exemplo, completamente falhada. Acresce a isto uma explicação final algo atabalhoada e contra-senso (reminiscência nanotecnológica, por inversão, do filme
The Cell (2000), de
Tarsem Singh?!), desiludindo no que se esperava ser um dos pontos altos da revista. Verdadeiramente, não se vislumbra onde poderá o editor ter encontrado «uma mudança de paradigma» através deste conto!
A escolha para autor homenageado neste número recaiu sobre
João Barreiros, o que, dada a qualidade e carreira deste autor de ficção científica, é de toda a justeza. Da mesma forma, parece apropriada a escolha de “Um dia com Júlia na Necrosfera”, vencedor do
Prémio Nova (Brasil) para Ficção Curta, em 1992 (facto estranhamente omitido na revista), e publicado em Portugal na colectânea
O Caçador de Brinquedos e outras histórias (1994 – e não 1997 como indicado no texto introdutório de
Nuno Fonseca), para representar as características peculiares da escrita de João Barreiros. Mas como não há bela sem senão, o conto foi interrompido precocemente, dividido em duas partes, colocando no meio do trepidante conto de Barreiros um interregno inexplicável de três meses… ainda para mais quando o conto foi retirado de uma colectânea que é
fácil de adquirir.
Se é verdade que a revista, como qualquer publicação em papel, luta com constrangimentos de espaço (80 páginas), que não tinha no número zero (188 páginas), analisando o seu conteúdo torna-se claro que algumas opções editoriais teriam permitido acomodar o segmento restante deste conto, permitindo ao leitor menos familiarizado com a contística de João Barreiros a oportunidade de se deleitar com este conto na sua plena extensão, sem desvirtuar o seu equilíbrio. Da mesma forma teriam evitado ao leitor mais conhecedor do autor a sensação de peso-morto que as 11 presentes páginas de “semi-conto” induzem. Essa opção teria também permitido que fosse outro o autor homenageado no número dois, e não novamente João Barreiros, o que, numa revista com quatro números anuais, e com a quantidade de autores que valerá a pena homenagear/relembrar, não é um facto desprezável.
A nota introdutória de
Nuno Fonseca sobre a contística de João Barreiros, “Não há Etceteras” é, à semelhança da análise publicada recentemente pelo mesmo ensaísta
na net sobre a colectânea já mencionada, de uma agradável clareza quanto às principais características das obras desse autor, mesmo que não entre em detalhes quanto às mesmas.
Também de uma desarmante clareza e sinceridade é o artigo assinado por
Pedro Ventura, “No buck, no Buck Rogers”. Por vezes há textos assim, cuja emotividade lhes empresta uma dimensão maior que o espaço que ocupam. Em pouco mais de duas páginas, Pedro Ventura aborda, sem cair em melodramatismos, algumas das dificuldades impostas pelo dia-a-dia aos escritores que não vivem da escrita.
De
Larry Nolen, conhecido crítico literário, a Dagon #1 publica uma tradução da crónica “A Ficção Científica Internacional e Problemas de Identidade”,
escrita em Novembro de 2009 para a página oficial dos
Prémios Nébula (o que, novamente, não é devidamente creditado). Como o próprio autor refere, aqui lança «mais perguntas que respostas». De qualquer maneira, traça uma base interessante de discussão; abordando tanto a paradoxal aversão do público anglo-saxónico às inovações introduzidas por autores estrangeiros no género (que teoricamente se assume como experimentalista), como a dificuldade dos próprios públicos não-anglo-saxónicos, expostos durante décadas a uma “dieta” de FC vinda maioritariamente do Reino Unido e dos Estados Unidos, de olharem para além desses modelos estabelecidos.
O artigo de
Luís Canau, sobre a edição 2009 do
Festival de Cinema Fantástico de Sitges, é um autêntico bloco-de-notas. Repleto de informação, na forma típica dos
reports de referência que este cronista tem feito desde há anos, este artigo é principalmente um ponto de partida e chamada de atenção para mais descobertas cinematográficas.
A entrevista ao israelita
Lavie Tidhar, conduzida por
Roberto Mendes, aborda tanto o seu trabalho editorial no
The Apex Book of World SF como o seu percurso de escritor.
Em termos técnicos, uma das incógnitas para este número inaugural em papel era o cuidado dispensado ao tratamento do texto. Recorde-se que o número zero da Dagon obrigou à disponibilização de uma versão corrigida pouco tempo depois do seu lançamento, de tal maneira os inúmeros erros apresentados descaracterizavam a publicação.
Apesar de não apresentar uma hecatombe semelhante, este número um ficou aquém dos cuidados redobrados que seriam de esperar. Prova disso, ironicamente, começa logo na primeira página do primeiro conto, com duas gralhas de fácil detecção (mesmo que nas páginas seguintes tudo pareça bem). Gralhas variadas assolam também o meio-conto de João Barreiros, e nem certas falhas do tradutor do conto de Nir Yaniv foram detectadas, como «Já foste muito longe demais» (claramente do original «You’ve gone way too far»!). Para além disso, certos descuidos de paginação criaram alguns efeitos que dificultam a leitura, como no caso da divisão pergunta/resposta na entrevista a Lavie Tidhar.
De qualquer maneira, o nível é bem superior ao demonstrado no número zero. Mas fica a dúvida se isso não se terá devido mais à maior qualidade dos textos do que a um mais atento trabalho de edição.
Também o trabalho de captação de novos autores, que é afirmado como uma das prioridades da Dagon, merece um maior dinamismo e atenção. A revista não apresenta referência a qualquer página oficial ou endereço de email para um contacto directo com o editor (quando muito é apresentado um link para a página oficial da editora num anúncio à mesma no verso da capa). Igualmente, não são apresentadas, seja onde for, regras de submissão para contos ou artigos; ou sequer são clarificadas possíveis retribuições por esses trabalhos, sejam monetárias ou em exemplares da revista.
Resta terminar esta resenha com o balanço final, depois de todos os tópicos que foram abordados. Efectivamente, pelo preço cobrado pela revista (8 euros
através do site da Edita-me; 8,40 euros nas livrarias), há aspectos de algum amadorismo (de forma e de conteúdo) que urgem colmatar. O meu coração de fã deseja que assim aconteça, e que a
Dagon possa prosperar e ser um verdadeiro motivo de orgulho para o seu editor.
Memórias da Ficção Científica
Quase a propósito do
post anterior, surge a descoberta do novo blog de
Álvaro de Sousa Holstein ,
Memórias da Ficção Científica.
Durante muitos anos ligado ao meio nacional e internacional da Ficção Científica (FC), a contribuição de
Álvaro de Sousa Holstein ao género teve provavelmente como facto mais marcante a publicação (em conjunto com
José Manuel Morais) da
Bibliografia da Ficção Científica e Fantasia Portuguesa (edições em 1987 e 1993).
Nas palavras do próprio, este novo blog tem como objectivo «ir aqui publicando todo o tipo de material (revistas, correspondência, livros, ilustrações, etc.) que ao longo dos anos fui guardando e que constituem as minhas memórias desde os 12 anos com a ficção científica, fantasia e horror».
Assim, sem ordem estabelecida, é revelado material vário de uma considerável riqueza gráfica e histórica; uma autêntica viagem de descoberta arqueológica, muitas vezes despoletando novas pesquisas.
Pena é que a maior parte do material não seja acompanhado de maiores considerações escritas, que forneçam mais pormenores sobre obras e autores. Geralmente nestes casos, polémicas aparte, essas visões são de grande valor para se apreciar o cenário que envolveu toda esta "idade de ouro" da FC, também em Portugal.
Universal, Limitada - Resenha
O desconhecimento a que são votadas as obras literárias de anteriores gerações permite-nos por vezes fazer descobertas agradáveis. Exemplo disso, para mim, foi o caso de
Universal, Limitada, de
Isabel Cristina Pires, vencedor do
Prémio Caminho de Ficção Científica 1987.
A área da literatura fantástica portuguesa é particularmente carente na análise da sua própria história. Por se considerar escassa e pobre, não é comum ser olhada no seu conjunto, ou através das suas influências unificadoras. No caso de
Universal, Limitada, essas influências parecem ser a New Wave, movimento literário não-oficial da década de 60, e algumas obras que a antecederam, nomeadamente
As Crónicas Marcianas (1950), de Ray Bradbury.
Da mesma forma, Isabel Cristina Pires é capaz de criar ao longo de cerca de três dezenas de contos curtos outras tantas histórias de personagens e mundos envolventes; sem nunca explicitar a ciência por detrás das suas especulações, mas também nunca caindo num excessivo misticismo (erro comum em muita da ficção científica
soft portuguesa dessa época), mesmo nos contos de carácter surrealista.
O primeiro conto da colectânea, “Educação sentimental”, pode ser tomado como exemplo de toda a obra. Uma paisagem, uma criança humana e o seu robô-guia. Em pouco mais que uma página, a autora consegue estabelecer uma ambiência bem definida, a psicologia das personagens, e um fecho da narrativa que se estende para lá desse fim. Para além desse, todos os restantes contos se centram em características humanas: medo, ganância, amor, raiva, dedicação, solidão; mas raramente são o que parecem inicialmente.
A escrita de Isabel Cristina Pires é imagética, evocativa e sonante. E é um sinal de excelência que a média dos contos incluídos seja muito boa, tratando-se de tantos e tão variados; certamente derivando daí a atribuição do Prémio Caminho.
Apesar de ter sido publicado há mais de vinte anos, estas narrativas envelheceram bem, bem melhor do que as de carácter especulativo mais científico. Afinal, apesar de um ambiente tecnológico cada vez mais acelerado, as bases da natureza humana tendem a ser menos mutáveis.
Uma obra de (re)descoberta aconselhada; que pode inclusivamente ser
adquirida através do site da Editorial Caminho pela módica quantia de 5 euros!
O Evangelho do Enforcado - Lançamento
Provavelmente a obra mais aguardada do ano no campo da literatura fantástica portuguesa,
O Evangelho do Enforcado, de
David Soares, marca o retorno deste autor ao romance histórico de laivos fantásticos, desta feita centrado nos
Painéis chamados
de S. Vicente.
Deste romance têm sido divulgados excertos vários, em blogs e redes sociais, sendo o mais considerável a antevisão das
primeiras 80 páginas, no site da editora
Saída de Emergência.
O livro já está disponível nas livrarias, mas o lançamento oficial ocorrerá apenas no dia
24 de Fevereiro, às 18:30, na FNAC Colombo.
A apresentação estará a cargo de
Manuel Joaquim da Gandra, docente do IADE e director do Centro Ernesto Soares de Iconografia e Simbólica, e do próprio
David Soares.
A Guerra da Pirâmide - Lançamento
Depois da publicação, em 2008, do primeiro volume,
Império Terra - O Princípio (sobre o qual já tive oportunidade de tecer
algumas considerações),
Paulo Fonseca anuncia agora o volume intermédio,
A Guerra da Pirâmide, de uma anunciada trilogia.
Perante a desilusão com a falta de apoio promocional da Editora Papiro, o autor publica agora o seguimento da saga através da Editora HM (aparentemente mais uma small-press a envolver-se no fantástico; depois de também ter sido indicada como editora da
Volluspa, o mais recente projecto de
Roberto Mendes, editor da revista
Dagon).
O lançamento oficial foi
anunciado para o próximo dia
28 de Fevereiro, às 17h, na
Fábrica Braço de Prata, sala Visconti. Aguarda-se que este novo volume constitua uma evolução na escrita do autor.
(Nota: Apesar da Fábrica Braço de Prata geralmente cobrar a entrada no recinto, há a informação de que o acesso ao lançamento do livro não dependerá de qualquer entrada paga).
Brinca Comigo - Resenha
A notícia de um tomo que junte autores com as capacidades já demonstradas de
David Soares,
João Barreiros,
João Ventura e
Luís Filipe Silva é por si só um acontecimento a festejar. Ainda mais quando surge numa altura em que a literatura fantástica portuguesa enferma por demasiado exposta à celeridade exagerada com que os novos autores são lançados à arena da publicação, sublinhando ainda mais a necessidade de maior prolificidade dos autores mais tarimbados.
No entanto, a recente antologia de contos
Brinca Comigo, e outras estórias fantásticas com brinquedos (Escritório Editora, 2009), editada por
Miguel Neto, revelou-se lamentavelmente uma oportunidade perdida; quer na óptica do leitor recém-chegado ao género ou do leitor mais habituado ao fantástico.
Se o leitor neófito fica com uma ideia bastante subvalorizada dos vários autores em presença, qualquer deles representado por um conto muitos pontos abaixo do melhor que já produziu, o leitor veterano não evita a desilusão perante uma iniciativa à partida com todas as possibilidades de constituir um veículo promotor do que melhor se faz em Portugal em termos de literatura fantástica.
"Brinca Comigo", de
João Barreiros, é a história de abertura, dando também o nome à antologia. Numa Lisboa devastada por um caos tecnológico, uma Horda de brinquedos, pendendo constantemente entre a desagregação e a plena consciência comunitária, não pára perante nada até conseguir concretizar a razão da sua existência. A utilização de bonecos mundialmente conhecidos, e queridos; sejam Noddys, Barbies e Kens, ActionMan, etc, cria uma familiaridade cândida no leitor, o que, conduzido pela mão experiente de João Barreiros, se transforma numa sentida preocupação com o destino dos protagonistas.
Publicado previamente no nº3 do ezine
Nova (o que não é referido nesta edição), este conto relaciona-se, em tom sarcástico e ambiente decrépito, com as estórias distópicas que povoam a sua fabulosa colectânea
O Caçador de Brinquedos (Editorial Caminho, 1994), entre outras. Assim, para quem descobrir a escrita de João Barreiros com a presente antologia, será o abrir de todo um mundo por explorar. Para os outros, que já conhecem os superiores
Caçador de Brinquedos ou
A Bondade dos Estranhos: Projecto Candyman (Chimpanzé Intelectual, 2008), este tratar-se-á de um conto competente, com um final típico do autor, embora porventura precocemente previsível; mas não descobrirão aqui nada de novo.
Tendo publicado a sua última colectânea de contos em 2008, apelidada
Os Ossos do Arco-Íris (Saída de Emergência, 2008), passando a investir desde então, com crescente sucesso, na escrita de romances,
David Soares tem, esporadicamente, contribuído com contos para diversos fins. Pena é que o conto incluído nesta antologia, "Um Erro do Sol", demonstre uma surpreendente confusão narrativa; fenómeno adicionalmente mais estranho num escritor com o carácter meticuloso de David Soares!
Um empresário de brinquedos dinamarquês julga encontrar, durante as férias familiares, uma nova atracção capaz de o arrancar à comparativa inferioridade perante os mais directos concorrentes. Tal descoberta fá-lo arrastar toda a família numa viagem até uma ilha remota, onde o espera um ambiente de horror. E é precisamente nesta fase da história que tudo parece perder-se: desde o investimento emocional na personagem do empresário, afinal um mero
lead in, à consistência da história, fragmentada entre as diferentes secções.
Um exemplo de que nem sempre um conjunto de bons ingredientes asseguram um prato final divinal, apesar da mestria do
chef.
Também de mestria se tem feito a carreira de
João Ventura, um autor que merecia já ter uma colectânea dos seus contos no mercado livreiro. Principalmente no formato curto, num registo urbano, irónico, actual, João Ventura tem demonstrado um virtuosismo invejável. Talvez por isso, se note tanto o desajuste da primeira metade de "A Boneca", onde o autor se revela menos à vontade com uma narrativa em ambiente de fantasia épica.
Aqui, a boneca nunca adquire propriedades de brincadeira, como a contracapa da antologia se arvora ter como temática central, mas sim habilidades mágicas capazes de castigar os tiranos da terra. E mesmo quando a história adquire uma temporalidade actual, o conto é estorvado pela previsibilidade que é imposta pela revelação inicial de toda a lógica da história. A ajudar a essa falha, à boneca, real protagonista da história, acaba por ser imposto um papel meramente passivo, fruto da estruturação da narrativa. Assim, infrutífero é o anseio do leitor de que no final da história surja um derradeiro twist que revele uma surpresa na conclusão.
Por último, o conto de
Luís Filipe Silva, "Não é o que ignoras o motivo da tua queda, mas o que pensas saber" (a vírgula é minha, já que o título na sua forma original me parece de infeliz escolha, por atreito a leitura errónea), utiliza bonecos cheios de poeira alienígena, lançada pelos invasores utara, como catalisador para a resolução da crise que é imposta ao planeta Terra.
A história de amadurecimento do protagonista principal durante a invasão proporciona um excelente esqueleto de suporte para o conto, que infelizmente não é tão bem aproveitado pela superficialidade e aspectos vagos da força invasora. Da mesma forma, as tecno-baboseiras debitadas como suposta explicação científica dos acontecimentos relatados só adicionam à sua falta de consistência. Realmente, é a dimensão humana do conto que acaba por constituir a sua única força.
Nota final de apreciação para a excelente capa da antologia (reproduzida acima), a partir de uma fotografia de
Pedro Vilela.
De qualquer maneira, mesmo não sendo a apreciação global desta antologia muito positiva, o historial e a capacidade técnica destes quatro autores aconselham a compra, e a leitura, da obra; mesmo que seja improvável que a mesma seja memorável.
SHORTCUTZ LISBOA #005
Todas as 3ªs, sempre às 21:30, sempre no Bicaense, acontece uma óptima oportunidade (digo eu, que ando metido na organização...) de ver curtas-metragens; com o bónus de parte da equipa das mesmas estar sempre presente, disposta a responder às perguntas da audiência.
E se isso não bastasse, depois da sessão (por volta das 11:00), a ladeira da Bica fica cheia de pessoas a beber copos e a discutir cinema (ou deverei dizer "a discutir cinema e a beber copos"?!).
Hoje a coisa volta a repetir-se, com uma sessão normal (depois da sessão da semana passada, com o anúncio da curta vencedora de Janeiro e com a curta internacional convidada).
CURTAS A COMPETIÇÃO:
- 'Metamorfose' de Silas Tiny, com a presença de Silas Tiny (realizador).
- 'Lucy' de Nuno Costa e Cristiano Van Zeller, com a presença de Nuno Costa (realizador) e Ana Marin (produtora).
CURTA CONVIDADA:
- 'The Champion' de Rui Avelans Coelho, com a presença de Rui Avelans Coelho (realizador).
CONVIDADO ESPECIAL:
- Tiago R. Santos (argumentista).