O Evangelho do Enforcado - Resenha
Com
O Evangelho do Enforcado comemoram-se da melhor maneira os
10 anos de carreira do escritor (,ensaísta, argumentista e desenhador)
David Soares. Como ocorre com o pintor Nuno Gonçalves durante este romance, talvez o autor não tarde a ser surpreendido ao ser apelidado de “Mestre”; porque é disso que se trata: uma tapeçaria de História e Criatividade, nela entretecidas com mestria.
Neste livro, narrado entre 1395 e 1450, cruzam-se os destinos das figuras principais da Ínclita Geração, principalmente os Infantes D. Pedro, D. Henrique e D. Duarte, de Nuno Gonçalves, possível autor dos Painéis (chamados) de S. Vicente (eles próprios um móbil poderoso em toda esta trama), e de várias personagens que vieram a fazer parte do património de folclore, espiritual e histórico, lisboeta.
Os personagens principais são moldados pelo autor com grande profundidade, baseando-se nos seus possíveis (ou imaginados) anseios e motivações: Henrique, na sua ambição, Nuno, na sua loucura, Pedro, na sua auto-consciência. Navegando muito para lá do que delas se conhece através da História, e algumas vezes mesmo assumidamente em sua contradição (quando a consistência da Estória pretendida assim o exigia), mesmo assim são mantidos os factos mais marcantes, balizando o bailado de personagens conduzido pelo autor de uma forma que se mantém harmoniosa, mesmo para o leitor mais esclarecido. Da mesma forma, a descrição dos locais, nomeadamente na capital, revela uma Lisboa Medieval em toda a sua grandiosidade e podridão, literalmente evocando uma pintura quinhentista com as palavras.
Os diálogos apresentam-se bem pensados e polidos, com especial destaque para o julgamento de Nuno Gonçalves e do seu
némesis, o Geronte, perante os Decanos. Aliás, aqui David Soares consegue insuflar o romance com uma cosmogonia própria, relacionando o autor original dos Painéis com aquele que, séculos mais tarde, os iria (re)descobrir. São façanhas como esta que marcam os autores verdadeiramente brilhantes. E antes do fim do romance, David Soares consegue ainda desvendar uma pequena prenda para todos aqueles que leram anteriormente o
Lisboa Triunfante (mas que consegue em nada prejudicar este romance para os leitores que não o fizeram!), desta forma elevando os seus romances a um nível superior, interligando-os, dando ao leitor a sensação de que acabou de vislumbrar, fugazmente, uma gnose transcendente.
Ao se resenhar um romance deste calibre, não se pode fazer mais do que fornecer um breve e ténue contorno. O mais saboroso, a carne que cobre os ossos, é algo que é melhor ser vivenciado que descrito. Porque as palavras que realmente interessam, nem a mais nem a menos, já David Soares as colocou entre a capa e contra-capa deste livro. A meio caminho entre o romance histórico e a literatura fantástica, mas tão bem concebido e executado que se torna irresistível para ambas as audiências, este
O Evangelho do Enforcado “ingere-se” de um trago, e anuncia voos ainda mais altos.
Exposição "Descobrir Novos Autores"
No mercado editorial actual, o trabalho do autor já não termina com a palavra «FIM» na conclusão do seu romance. Cada vez mais, as editoras mostram-se interessadas em escritores capazes de gerar o seu próprio público, nos que trazem consigo um capital acrescido de marketing.
No mercado anglófono têm sido vários os exemplos de autores que atingiram a notoriedade através de técnicas alternativas de promoção. Através de crónicas, blogues, podcasts, romances disponibilizados em Creative Commons, escritores como
Cory Doctorow,
John Scalzi,
James Patrick Kelly ou
Tee Morris, atingiram índices de popularidade que, eventualmente, lhes proporcionaram contratos de publicação.
Provavelmente nesse espírito, surgiu recentemente o projecto
Descobrir Novos Autores, impulsionado pelo escritor
Rafael Loureiro (
Saga Nocturnus, Editorial Presença). Reunindo autores de vários géneros, o projecto começará por organizar exposições itinerantes. A primeira ocorrerá em Abril, na Amadora, e o conteúdo pode ser consultado no cartaz abaixo.
BANG! #7 - Resenha
O
número 7 da revista
BANG! encerra em si duas realidades distintas. Infelizmente, a primeira “morre” logo a seguir à primeira página.
Não nos confundamos. Este sétimo (aliás, na verdade é já o oitavo) número da BANG! possui muitas razões de interesse e peças de qualidade. Mas o quadro descrito na página editorial, nomeadamente no co-editorial do co-editor
Nuno Fonseca, rapidamente se revela completamente desadequado perante o conteúdo apresentado.
Se o editorial de
Luís Corte-Real, líder da
Saída de Emergência (SdE), a quem pertence a BANG!, se centra no pendor “evangelizador” da iniciativa, focando-se nas novidades da colecção homónima da revista, Nuno Fonseca promete «ensaiar novos autores e conteúdos […] inovar e para melhor», assumindo o papel da publicação «se renovar constantemente, pisar novos territórios, abraçar novas ideias». Um editorial que nos faz esfregar as mãos de contentamento… até nos apercebermos que as mudanças são, afinal, pouco mais que inexistentes, ou meramente cosméticas; e a descrição desnecessariamente hiperbólica!
Analisemos, de forma fria, e prévia, o índice. Nele constam cinco contos; destes cinco autores, três foram já publicados anteriormente na revista BANG! (Richard Matheson, Vasco Curado e Renato Carreira). Quanto aos dois estreantes (Valéria Rizzi e Gerson Lodi-Ribeiro), por razões díspares, a abordar mais à frente, a sua inclusão parece-me desapropriada perante as intenções propaladas pelo editorial. Quanto aos artigos, dos sete presentes, cinco são de contribuidores anteriores da revista (David Soares, António de Macedo, Nuno Fonseca, João Barreiros e José Carlos Gil) e um está relacionado com um outro lançamento da editora (Octávio dos Santos), e sobre ele também existem mais algumas considerações a tecer. Quanto ao artigo do estreante Ricardo Venâncio, é sem dúvida uma mais-valia para a BANG!
Mas voltemos um passo atrás.
Rendida ao formato electrónico, após os três números iniciais em papel, a BANG! volta a ser vendida num formato impresso (adquirível apenas através do
site oficial da editora SdE); agora em tamanho A4 , totalmente a cores. A juntar ao ar mais de revista e menos de fanzine, também o grafismo foi incrementado. Se isso demonstrou uma vontade de maior arrojo, é verdade que certas opções acabam por incomodar um pouco a leitura; mas são pormenores que se acredita irem ser solucionados até ao próximo número.
A revista abre com o conto “Na Guerra com Bruxas”, do americano
Richard Matheson (“Witch War”, no original de 1951). Não investindo terrivelmente em explicações científicas para este grupo coquete de bruxinhas, Richard Matheson consegue no entanto criar um ambiente envolvente; mantendo a leveza da história, aliando-lhe com mestria, em contraponto, a carnificina perpetrada pelas menores sobre um grupo de soldados invasores.
Já a história que se lhe segue, “Horda Primitiva”, de
Vasco Curado, parece necessitar de um editor que lhe dê a volta. Digo isso porque me parece que o autor submeteu demasiado a narrativa à moral que lhe queria emprestar. À personagem principal é reservado o papel de espectador passivo de uma situação que se apresenta ao leitor de forma pouco verosímil para além das filosofias discursadas. Como está, a atitude dos órfãos perante o padre mais não faz que seguir os caprichos do autor; sendo o leitor levado pela mão do princípio ao fim, de forma pedagógica, esvaziada de verdadeiro significado. Por um autor que já mostrou muito melhor.
“A Preocupação Fundamental”, conto de estreia da jovem
Valéria Rizzi (portuguesa, de ascendência italiana), é um contra-senso (para não lhe chamar sem senso!). Apesar de se descrever na curta biografia como «espreita[ndo] para o mundo das janelas góticas da sua vivenda», este conto nem denota uma influência gótica nem, tão pouco, uma voz feminina. A batalha campal movida por uma miríade de espécies animais aos veraneantes humanos é descrita numa prosa desconjuntada, de estrutura incongruente, e numa voz masculina, muitas vezes próxima da escrita de um João Barreiros, mas neste caso imberbe e de quinta categoria. Não sei se terá ou não sido essa a fonte inspiradora; mas custa-me a acreditar que os editores da BANG! tenham considerado este conto com as características mínimas para ser incluído na publicação.
Segue-se “A Melhor Diversão da Cidade”, de
Gerson Lodi-Ribeiro, autor brasileiro já conhecido dos leitores portugueses, tanto pela sua participação em antologias (incluindo
A República Nunca Existiu!, 2008, da SdE) como pelos livros que publicou na Editorial Caminho (
Outras Histórias, 1997, e
O Vampiro da Nova Holanda, 1998).
Tendo-se notabilizado pela sua exploração do romance histórico alternativo, sub-género onde será um dos principais autores lusófonos (por exemplo, os contos que escreveu sob o pseudónimo
Carla Cristina Pereira são brilhantes), Gerson Lodi-Ribeiro apresenta-nos aqui uma desafiante história de amor carnal entre um humano e uma extra-terrestre.
Apesar da competência da história, causa estranheza, voltando de novo a referir o editorial acima mencionado - e as suas promessas de frescura e novidade -, que, tendo o Brasil actualmente uma vaga considerável de novos autores, e uma prolificidade invejável dos autores veteranos, tenha sido escolhido este conto, anteriormente publicado na antologia
Como era Gostosa a Minha Alienígena! (2002) para representar o que se faz do lado oposto do Atlântico. Pior, entrando na moda actual patente nas revistas nacionais de literatura fantástica, não é dada qualquer indicação da sua publicação prévia.
O artigo “O Druida de Somersby”, de
Octávio dos Santos, que acompanha o poema “Kraken” (1830), de
Alfred Tennyson, apesar de escorreito, pouco passa de um artigo de wikipedia. A sua incorporação talvez seja melhor explicada pela sincronicidade da publicação de
Poemas pela SdE (com tradução do próprio Octávio).
Felizmente, o artigo que se segue, “A Companhia dos Cegos”, de
David Soares, constitui exemplo perfeito de uma peça de excelência. Abordando comparativamente o
Ensaio sobre a Cegueira (1995), de
José Saramago, e
O Dia das Trífides (1951), de
John Wyndham, David Soares analisa o papel da cegueira em ambos, e as suas ramificações. Apoiado por várias leituras, e referências, explana conceitos como a inconformidade, o nojo e o terror. A par da crescente qualidade como romancista, é claramente compensador que o autor continue a exercitar a sua veia ensaística, sendo a revista um local ideial para tal.
Para quem acredita que não pode existir um fantástico de “gostinho” luso, aqui está “O Indescritível Sr. Salcedo”, de
Renato Carreira, para o desmentir. Na linha do que
João Ventura ou
João Bengelsdorff já tinham atingido nas páginas da BANG!, este conto traça o abalo sofrido pela realidade do dia-a-dia ante as invasões do sobrenatural. Mais especificamente, a crescente impossibilidade do Inspector Baltazar Mendes ignorar as espantosas evidências que atravessam o seu espírito analítico.
“HP Lovecraft – Um Ícone da Cultura Ocidental Contemporânea (2ª parte)” completa o artigo, da autoria de
José Carlos Gil, iniciado na BANG! anterior. Num tom mais académico que os restantes artigos da revista, mas igualmente acessível, o principal tema analisado é a racionalidade de
Lovecraft perante a cosmogonia que transparece nas suas obras.
Entre livros que não existem por terem sido destruídos, livros que nunca foram escritos, e livros que não querem ser lidos, “Livros Míticos, ou a Biblioteca (quase) Invisível”, de
António de Macedo, é um artigo de deliciosa leitura, numa série que o autor promete continuar em breve.
A revista termina com três rubricas, sem elucidar se se irão manter com os mesmos contribuidores, ou se estão reservadas para rodar convidados.
No caso de “De A a BD”, esperemos que
Ricardo Venâncio se mantenha. Este desenhador de banda desenhada, autor da série
Defier (2009), apresenta uma opinião bem fundamentada e interessante sobre o
comic Watchmen (1987), de Alan Moore e Dave Gibbons.
Nuno Fonseca, em “Luzes, Câmara… Bang!”, opina sobre os filmes Avatar e Sherlock Holmes.
Em “Os Livros das Minhas Vidas”, João Barreiros dá lugar à nostalgia por outros livros, noutros tempos.
Voltar a ver a BANG! em papel seria sempre uma alegria. Mais, depois de constatar a elevada qualidade da maioria do material incluído neste número 7. Quanto aos aspectos menos conseguidos (de grafismo, de conteúdo e de revisão), acredito que irão ser devidamente melhorados na próxima edição; com a cabeça perdida na fantasia, mas os pés bem assentes no chão.
Passatempo Dog Mendonça e PizzaBoy
A falta de tempo livre até à próxima semana está a atrasar a minha leitura, e algumas opiniões que gostaria de ter deixado já aqui, como sobre
As Atribulações de Jacques Bonhomme, de Telmo Marçal, o
Evangelho do Enforcado, de David Soares, a
Bang! nº7, ou a bd
Dog Mendonça e Pizzaboy, de Filipe Melo.
De qualquer maneira, sobra o suficiente para, sobre esta última, ajudar a divulgar o passatempo que foi lançado recentemente, oferecendo um exemplar do livro, autografado, e uma t-shirt alusiva a esta publicação.
Para ganharem este aliciante pacote, só têm de enviar (até 30 de Março) para a produtora (opatoprofissional@gmail.com) um desenho da vossa autoria de uma das personagens da história.
Já agora, não deixem de comprar esta arrojada aposta da Tinta da China. Quanto mais depressa o fizerem, mais depressa será assegurada a publicação do segundo volume. E, acreditem, vale mesmo a pena!
BANG! nº7
Este ano de 2010 está mesmo a revelar-se cheio de boas notícias para a literatura fantástica nacional. Principalmente no que diz respeito à exposição, em papel, de ficção curta e não-ficção.
Depois do lançamento da revista
Dagon, eis agora que a revista
BANG! volta a estar disponível em papel (por 5 euros; embora, daqui a um mês, esteja acessível, como vinha a ser hábito desde o nº3, para download grátis em formato pdf).
Com novo formato (A4) e design reformulado, a
BANG! nº7 marca também a estreia de uma nova equipa de edição. A
Luís Corte-Real, editor da Saída de Emergência, junta-se
Nuno Fonseca, que já tinha co-editado, com
Ricardo Loureiro, o ezine
Nova nº3.
A revista apenas pode ser
adquirida directamente na página oficial da editora, mas com a vantagem da editora assumir os custos de envio (para Portugal Continental e Ilhas).
Ainda sem ter lido a revista, fica a lista de conteúdos:
[ficção]Na Guerra com Bruxas -
Richard MathesonHorda Primitiva - Vasco Curado
A Melhor Diversão da Cidade -
Gerson Lodi-RibeiroA Preocupação Fundamental -
Valéria RizziO Kraken -
Alfred Tenyson
O Indiscritível Sr. Salcedo -
Renato Carreira[não ficção]O Druída de Somersby -
Octávio dos Santos
A Companhia dos Cegos -
David SoaresH. P. Lovecraft, Um Ícone da Cultura Ocidental Contemporânea -
José Carlos Gil
Livros Míticos ou a Biblioteca (Quase) Invisível -
António de Macedo
Luzes, Câmara... Bang! -
Nuno FonsecaDe A a BD -
Ricardo Venâncio
Os Livros das Minhas Vidas -
João Barreiros