Alçapão, de João Leal - Resenha
Terminando a leitura de Alçapão, obra de estreia de João Leal (Quetzal, 2011), volto a ler as frases promocionais da capa e a sinopse no seu reverso; e a ideia de que acabei de partilhar de um tremendo mal-entendido reforça-se ainda mais.
Mal-entendido esse que começa pelo nome do romance, que afinal poderia ter sido igualmente “Ilha”, ou “Torre”, ou, obviamente com alguma ironia,“Tábuas de madeira onde surgem espontaneamente desenhos premonitórios”, ou qualquer outro elemento da narrativa que, não sendo propriamente definidor do livro como um todo, nele terá a sua importância pontual. Não que o livro não acabe por ter um objectivo, que o tem, e que até consegue resistir ao encobrimento a que o autor o devota (e esta afirmação explicarei mais abaixo); o que me faz interrogar se simplesmente alguém não encontrou melhor forma de o “vender”, perdão, promover.
A este ponto convém dizer que a sinopse do livro contém uma afirmação da qual partilho inteiramente: «João Leal, nesta sua homenagem plena de imaginação às histórias de aventuras […]». Efectivamente, João Leal demonstra aqui uma imaginação fecunda, e uma capacidade vincada para a descrição psicológica dos personagens. No entanto, a estrutura narrativa concebida acabou por espartilhar brutalmente tanto o universo inventado como o desenvolvimento das próprias personagens, sendo estas últimas amiúde marteladas à forma pela qual a vontade do autor determinou o encadeamento da história.
E isso também se torna visível na própria relação autor-leitor. Citando uma das personagens da 2ª parte do livro, Suryal: «Não precisamos de plano. O Altíssimo nos indicará o que fazer. Vocês, homens, já deviam ter aprendido isso para as vossas vidas e deixado de se preocupar tanto com o futuro». É esse exactamente o sentimento que fiquei como leitor, que deveria permanecer sentado e quieto, aceitando os inúmeros momentos de dei ex machina que constantemente surgem como pipocas para explicar a condução da história e a interacção entre personagens, e para a fazer andar na direcção aparentemente pretendida pelo autor. Ou seja, perde-se a empatia do leitor pela narrativa, tal parece a obsessão do autor em criar surpresa no leitor; tal é a necessidade que tudo seja inesperado… inclusivamente o móbil da história!
Como referi, a história é rica em ideias. Por vezes, demasiado rica para que algumas delas não se comecem a entrechocar. A sua coluna vertebral, parece ser afinal um episódio bíblico, e a forma como ele poderá ter ocorrido, cruzando o nosso presente com esse passado. A primeira parte do livro está vestida como um thriller policial, destinado a fazer com que duas personagens se sujeitem a uma promessa a um anjo (e tudo o resto acaba por ser descartável, incluindo o badalado alçapão!). A segunda parte está vestida como romance histórico-bíblico, com algumas interpretações originais de mitos sobejamente conhecidos, como a Torre de Babel ou a Arca de Noé.
Apesar do estatuto paraliterário dos romances de aventuras, há que reconhecer que o seu sucesso reside em última instância na capacidade de nos fazer perseguir intensamente um mistério ou um objectivo. Para tal é necessário que esse objectivo, ou os contornos desse mistério, sejam apelativos. Da mesma forma, é necessário que os sucessivos episódios sejam congruentes e significativos, para o avançar da trama e para o desenvolvimento dos próprios personagens. Em Alçapão, o único fio condutor comum e declarado ao longo de todo o livro, que vislumbro, é o da obediência absoluta aos desígnios do “Altíssimo”. Como leitor, isso definitivamente não me chega!
Ao terminar a obra, prefiro concluir que ela talvez se devesse ter chamado algo como “A Palavra” ou, talvez melhor, “O Verbo”. Não me chegando para colmatar todas as deficiências que apontei anteriormente, certamente não me convencendo de que se trata de um romance de aventuras de excelência, levar-me-ia no entanto a concluir que o principal motor da trama está afinal lá, mas encontra-se demasiado encoberto praticamente até ao final.
Aqui, quase apostava na falta de questionamento de um editor ao que o autor escreveu, assim como o noto em algumas cenas que saíram demasiado confusas, em frases gatadas, ou em linguagens desajustadas. Mas isso levar-nos-ia ao crescente desmazelo até das mais conceituadas editoras nacionais, visível tanto nas traduções como nos originais; e isso iria conduzir-nos a outra conversa.
Assim, acredito que este Alçapão, de João Leal, seja um romance com uma imaginativa premissa de universo, habitado por personagens bem moldadas, mas que no entanto sofreu de uma excessiva omnisciência (ou talvez devesse mesmo dizer prepotência) do autor. Cada vez que a obra me começava a conseguir envolver, e não foram poucos os momentos, passado pouco lá era de novo arrancado do deslumbramento por uma explicação, diálogo ou facto que me surgiam incongruentes. É a mesma sensação de estarmos a tentar atingir os 200 km/h num Ferrari que engasga sempre que atingimos os 80…
Não é fácil fazer um balanço desta obra. Sendo o primeiro romance do autor, não posso deixar de ficar curioso pela próxima obra, apesar de a vir a abordar certamente com mais cautela do que neste caso. Como romance fantástico, apesar da imaginação patente, o tratamento narrativo acabou por o revestir de um excessivo clima de artificialidade. Mesmo esse clima sendo quebrado pontualmente por personagens com aspectos cativantes, se ao menos os tivessem mantido ao longo da obra, e se o autor tivesse ouvido a sua voz, talvez o resultado fosse mais compensador, do ponto de vista deste leitor.
(nota para o fabuloso booktrailer concebido para o livro)